Doutora em Enfermagem, Professora do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil.
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O texto propõe uma reflexão sobre o conceito de solidariedade e sua pertinência ao tempo presente, incluindo novas e desafiadoras ligações com o campo da ciência e tecnologia. Ao relacionar o tema com o conhecimento da Enfermagem, aponta para importantes desafios que envolvem a superação de iniqüidades, desde a redefinição de prioridades e agendas, estratégias de investigação e oportunidades de divulgação e acesso aos seus produtos.
Palavras Chave: pesquisa em Enfermagem, solidariedade e ciência.
A proposta de abordar um tema que articula solidariedade e ciência já de início merece ser vislumbrada em sua atualidade, ou seja, como um tipo de articulação que importa ao pensamento e aos problemas do tempo presente, ao nosso tempo. Sabemos que a ciência expressa muitos dos movimentos e transformações das sociedades humanas e, mais que isso, ela é uma potente produtora de modos de ser e viver de indivíduos e sociedades.
O campo dos fenômenos humanos e sociais mostra-se fértil às novas abordagens ou atualizações frente a antigos e emergentes problemas da vida. O olhar da ciência amplia desmedidamente a percepção de questões e formulações a ponto de já não mais sabermos o que pode escapar de sua atenção. Sob formas de conhecer que se distinguiram das formas inauguradas pelas ciências naturais - mas mantida em posição de auto vigilância e controle de seu estatuto de rigor e credibilidade científica - a vida social se coloca sob o foco de inúmeras lentes, tanto quanto a célula a muito se colocou sob o microscópio.
Um exemplo pode ser dado pela bioética. Filha da própria ciência, emergiu como uma das mais marcantes insígnias de seu tempo – a celeridade com que se expande. Defendida como uma exigência de maior responsabilidade frente aos crescentes poderes da ciência não é de se estranhar que tenha se tornado uma exigência relativamente aceita em todo o tecido social, mesmo que mantida como campo parcialmente esotérico. Assim, tem se tornado um requisito indispensável e inquestionável das práticas científicas, dos fóruns onde a ciência é discutida e praticada, em que os argumentos dos especialistas se juntam e se valem de reclames sociais mais ou menos ampliados. A conseqüência pode ser vista como a emergência de um instrumento vigoroso e prestigiado, de um discurso que tem como objeto o discurso e a prática científica; enfim, um controle sobre o maior dos controles, sobre o que pretende conhecer e controlar a vida - o saber científico. Como discurso, é capaz de inventar novos problemas e novos sujeitos, de por em questão os que já ali estão, mas, também, de reproduzir uma escrita, reificar lógicas e regras, inibir possibilidades outras (Ramos y col. 2009)
Das biociências e das tecnologias delas derivadas a bioética tem o motor que sem descanso oferece-lhe propósitos, estímulos, demandas; não quaisquer demandas, mas demandas urgentes e importantes. Importância não apenas justificada por seus propagadores e estudiosos, mas vulgarizada pela informação massiva e popularizada por uma sociedade que se vê entre o risco e a vulnerabilidade. Não quaisquer riscos, mas riscos graves e intensos, seja pelos tipos de danos ou perdas impingidas, seja pela extensão dos mesmos ou pelo número de atingidos. Mas, também, riscos e vulnerabilidades não igualmente distribuídas, como também não igualmente podem ser atribuídas as responsabilidades por sua produção (Ramos y col. 2009).
O que se pretende, neste início e exemplo, é destacar o quanto somos, nós mesmos, produzidas na confluência de inúmeros dispositivos e formas identitárias, nas quais a ciência é uma das mais, senão a mais ativa participante. Não apenas a ciência investiga nossas circunstâncias humanas, como cria e modifica essas circunstâncias. E como somos deste tempo, podemos pensar agora o que antes talvez fosse algo muito estranho e sem nexo – pensar ciência e solidariedade. Sem dúvida, a maior parte da história da ciência transcorreu sem a menor necessidade de se preocupar com este tema; ou seja, solidariedade não fazia parte da pauta cientifica ou tampouco merecia preocupação, até que conhecimentos e vertentes não hegemônicas fossem alcançando o status cientifico e trouxessem a essa pauta novos temas.
Assim, por um olhar retrospectivo, se pode reconhecer um tempo que passou a ter como marca a ciência – que passamos a denominar modernidade – e talvez se possa perguntar por que hoje ‘tantos interesses em torno da solidariedade? Com inspiração em Ian Hacking (2000) talvez se possa perguntar: Por que tem sido essencial organizar tantos de nossos projetos atuais em termos de solidariedade? O que levou a solidariedade a ser uma abordagem a tantos problemas da vida e da ciência? Sob que princípios? E que estruturas lhe dão sustentação? Estas questões motivaram estudos que fiz sobre a bioética, mas continuam a me ser úteis para pensar várias outras questões.
Talvez se tenha hoje mais diversas denominações a nos caracterizar – pós-modernidade, modernidade líquida, modernidade tardia; sociedade tecnológica, sociedade de informação, sociedade de risco . Segundo Foucault (1999, p.1) se pode falar de modernidade por referência a uma atitude de modernidade e sua relação com uma atitude crítica como “certo modo de pensar, de dizer e também de agir, um tipo de relação com o existente, com aquilo que se sabe, com o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, com os outros”. A relação entre iluminismo e crítica no projeto de sujeito moderno nos lembra que o empreendimento crítico põe em questão a própria razão, por seu excesso de poder. Esta chamada crítica da razão presunçosa ainda faz sentido, quanto às contemporâneas críticas sobre os projetos da ciência e da técnica, em ataque à sua ingênua posição de alheamento e soberania em relação às formas de dominação social; como se possível fosse desvincular “as estruturas racionais que articulam o discurso verdadeiro e os relativos mecanismos de sujeitamento” (op. cit., p. 7). Daí emerge o procedimento analítico inaugurado por Kant, de questionar sobre “qual idéia falsa teve o conhecimento acerca de si mesmo? A que uso excessivo encontrou-se exposta e, conseqüentemente, a que forma de domínio ligou o próprio destino?” (op.cit., p. 8)
A segunda pretensão, então, é de questionar sobre este momento que torna fundamental ligar a solidariedade à ciência e, antes de qualquer exploração do conceito e suas aplicações, que se possa pensar sobre porque isto nos interessa. Este deve ser o primeiro passo no uso de qualquer conceito.
As circunstâncias que tornam importante esta ligação, ciência e solidariedade, são em muito semelhantes as circunstâncias referidas à bioética. No texto intitulado “a bioética nas contingências do tempo presente − a crítica como destino?”, foram apontadas quatro condições de pertinência do discurso da bioética, que se aplicam a solidariedade: - esta atitude de modernidade e crítica (a que já me referi); - uma interessante posição das disciplinas hoje, ou seja, de uma maior circulação e interpenetração dos discursos das disciplinas; - a possibilidade da sociedade conhecer as ameaças e riscos, até mesmo prever sua ocorrência e magnitude; - uma super-exposição do saber (da sociedade) sobre si mesma na rede de informação (RAMOS y col, 2009)
Numa linguagem mais simples poderia ser dito: a solidariedade tornou-se importante porque somos obrigados a olhar para nós mesmos e sabemos mais sobre o que está incluído nesse “nós”, mesmo que em imagens borradas e sem fronteiras; porque não podemos negar as conseqüências de nossas escolhas, que somos todos “atingidos” porque pertencemos; - porque nossas linguagem se misturam nos empurrando para hibridismos e novos problemas, para além de nossos territórios habituais e restritos. Vale lembrar as incontáveis novas ligações de saberes, com intercâmbio de conceitos e procedimentos, seja daquelas em objetos com relações mais evidentes (demografia histórica, psicolingüística) até mesmo em áreas sem vizinhança pregressa (matemática social, engenharia genética, piscofisiologia).
Por tudo isso a solidariedade passou a ser um problema também para a ciência, um problema para todos nós. O que antes esteve presente nas doutrinas religiosas, penetrou o discurso das ciências humanas e sociais e, delas, para todas as outras disciplinas; penetrou a política e a academia.
Nesta segunda parte são utilizados aportes de Sartor (2004), cientista social, para sintetizar algumas idéias, a partir das quais Solidariedade:
O que se apreende dessa contribuição, e que pode facilmente ser constatado numa rápida pesquisa, é que solidariedade está envolta em uma ambigüidade conceitual e, algumas vezes, adota sentidos trivializados. Tal ambigüidade desafia as visões científicas monodisciplinares e as matrizes que definem nossas organizações, especialmente porque conceitos diversos conduzem a resultados diversos (Sartor, 2004).
De tudo isso, basta tomar a solidariedade como “comprometimento e engajamento político-cultural”, numa assunção ética do conceito, que envolve arte e política cosmopolita. Dado esse caráter ético-político, cabe enfatizar a tarefa de não reduzir a solidariedade a uma perspectiva instrumental, ou seja, de cooperação instrumental, pela qual indivíduos e instituições atuam juntos porque isso atende interesses individuais e os faz alcançar vantagens. A cooperação pode ser muito útil e interessante, mas cessa quando se atinge o objetivo e não representa um valor em si mesmo. Assim, as múltiplas redes que nos envolvem e o grande desafio de estabelecer metas comuns; de a elas submeter uma série de desdobramentos de nossas ações e possíveis ganhos, numa atitude não meramente instrumental (Sartor, 2004).
Ainda segundo este autor, a questão mais significativa para concretizar a solidariedade em projetos interinstitucionais consiste em “transformar idéias em metas comuns”, ampliando e consolidando o poder-fazer com autenticidade (como outros diferenciados). Também supõe atenuar o conflito entre a cooperação e a inovação, como condições para o avanço prático, o que exige aproveitar oportunidades e potencialidades.
Um terceiro objetivo a que se chega, então, é abordar o que de prático se pode relacionar deste tema como o conhecimento da Enfermagem. Para isso, é preciso retomar outra importante relação – entre iniqüidade e solidariedade. Iniqüidades são diferenças/desigualdades produzidas (não naturais) e injustas. A Enfermagem enfrenta conseqüências da iniqüidade por vários pontos de vista: - pelos deteminantes sociais dos processos de viver, adoecer e morrer; - pelo acesso e distribuição das alternativas socialmente construídas para a vida com qualidade; - pelas desiguais condições de trabalho, de acesso à capacitação e remuneração justa, de distribuição e proteção dos trabalhadores nas diferentes realidades; - pelos desafios da produção, distribuição e consumo do conhecimento necessário a uma prática qualificada, entre muitos outros.
Por cada um desses pontos críticos - que envolvem a saúde, o trabalho e o conhecimento da enfermagem – muito se tem a falar. Mas, basta se ater ao ultimo ponto, em estreita relação com este evento. O que significaria pensar o conhecimento de Enfermagem do ponto de vista da solidariedade e da superação de iniqüidades?
Obviamente que para uma pergunta tão complexa sugere-se pontos de partida, supostos iniciais para a reflexão:
Sobre este segundo suposto cabe acrescentar o que a poeta russa Marina Tsvietaieva falou sobre a relação com a obra, no ensaio “O poeta e o tempo”: “ A única recusa legítima de uma obra, é a recusa com plena consciência”. Ninguém é obrigado a amar, como diz a poeta, ou a ser solidário, digo eu, mas precisa conhecer o que não ama e por que não ama. Mesmo o cansaço, a prevenção ou a imobilidade, “da cabeça e de todo o ser”, podem ser compreensíveis, mas não são razões legitimas para não solidarizarse.
Enfim, estes parecem ser supostos tão genéricos, pontos de partida, que pouco dizem sobre o resto do caminho. Mas como fazer? E como parece difícil, especialmente quando situamos nossa experiência de enfermeiras e pesquisadoras, entre tantas demandas e obstáculos concretos.
Os desafios globais de nosso tempo e trabalho se referem ou são gerados por mudanças populacionais, ambientais, econômicas e políticas importantes, que acontecem junto a um intenso e acelerado desenvolvimento tecnológico. O avanço das sociedades não eliminou grandes iniqüidades. Na chamada sociedade do conhecimento e em tempos de globalização, a transferência do conhecimento representa um enorme desafio. O desafio da caminho da pesquisa para a inovação.
No Brasil, a título de exemplo, a Enfermagem vem ganhando grande expressão e visibilidade no campo da ciência, pelo crescimento de sua produção científica, tanto quantitativo quanto qualitativo. Este é, sem dúvida, um passo fundamental, mas ainda distante de superar a desigualdade na produção, acesso e usufruto dos benefícios do conhecimento. Se as desigualdades internas, no próprio país, são preocupantes, mais ainda ao se pensar a Enfermagem mundial. O Brasil ocupa hoje a quinta posição no ranking de números de artigos de Enfermagem no mundo. Mas melhorar nossa posição nem sempre significa contribuir para melhorar as assimetrias. O mesmo pode ser visto quando se analisa a distribuição de cientistas no mundo.
Outro grande desafio diz respeito a novos modos de pesquisa ou de organizar a investigação, para os quais precisamos estar aptos e preparados. A pesquisa é, hoje, centrada em problemas, não limitada a departamentos ou grupos estabelecidos; dirigida para objetos de significância estratégica, por pesquisadores em associações interdisciplinares; produzindo resultados obtidos regionalmente, mas aplicáveis globalmente, em processos que podem ser transferidos parcial ou totalmente para a sociedade (ZAGO, 2010).
Solidariedade recombina ciência e consciência e é, antes de qualquer coisa, opção deliberada (Sartor, 2004). Ela não pode ficar na dependência ou à espera de uma nova política, uma autorização, incentivo ou linha de crédito. Ela tem que ser empreendedora, revolucionária, porque é um valor, não um instrumento. Instrumentos são aplicados, valores dirigem nossa mente e nossas ações.
Ao fechar esta segunda parte, vale uma pequena citação: Ser solidário significa humanizar os desapontamentos de ações humanas e se encantar com as pessoas que encontra pelo caminho. Ante à complexidade do conceito e sua concretização, a simplicidade desse encantamento. Se não representa toda a bagagem que se deve construir, pode ser o primeiro indício de que há condições para ir em frente.
Na terceira e ultima parte desta reflexão, recorre-se a alegorias inspiradas em formigas. Na verdade 3 exemplos e inspirações. No primeiro, Oliveira (2003) refere:
uma formiga é comparável a um “agente aleatório”, solitário (como bêbada) que em ações erráticas e percursos intrincados explora o mundo e produz “trilhas químicas”; - no conjunto, muitas formigas são capazes de uma coordenação impensada a partir do comportamento individual, produzir um efeito ou qualidade imprevista, resolvendo um complexo problema de otimização de recursos, como em times ou análogo a uma estrutura ou sistema, com agências compostas por serviços e equipes; - a integração destes sistemas (o formigueiro) é feita por “símbolos”, assim denominados pelos entomólogos por indicar funções em um sistema complexo e hierarquizado, um corpo em permanente mudança (formigas trocando de times, equipes mudando de agencias, etc) numa experiência vital para o formigueiro, ou seja, em sucessivos modos de organização, sucessivas qualidades ou invenções. (baseado em Oliveira, 2003)
Num segundo exemplo, Prigogine (2000), Prêmio Nobel de Química, em sua “Carta para as futuras gerações”, toma as ciências da complexidade para negar todo determinismo, insistir na criatividade e lembrar que o futuro não está dado – o fim das certezas.
As formigas e as estruturas organizadas que surgem espontaneamente exemplificam alguns efeitos de criações coletivas – muitas formigas se tornam cegas nesta transferência de iniciativa para o coletivo. Mas também sevem para ilustrar que todos os rumos são possíveis e um é seguido. Um evento é uma aparição depois de uma bifurcação. Flutuações e bifurcações nas quais a ação individual ainda é essencial ... para criar novas flutuações. A história é, assim, uma sucessão de bifurcações, com perdas e danos, com escolhas e acasos. Também nesta nova bifurcação, da biotecnologia, da robótica, das redes de informação, da inteligência artificial - nossa posição é de incerteza e ambigüidade. Bifurcações são sinais, a um só tempo, de instabilidade e de vitalidade da vida social. (baseado em Prigogine, 2000)
E num terceiro exemplo, Azevedo (2007) relata um estudo desenvolvido na Universidade de Regensburg – Alemanha, publicado na Revista Science. O experimento introduziu formigas infectadas por um fungo em uma colônia; as formigas saudáveis não rejeitaram as doentes, ao contrário, aumentaram a limpeza do ninho e das doentes, removendo os esporos do fungo. A infecção não aumentou nas formigas que trataram das doentes, mas a população ficou mais resistente ao fungo. A solidariedade, aqui, é uma regra biológica de sobrevivência.
De agentes aleatórios à complexas organizações, as formigas demonstram níveis de solidariedade tão básicos quanto efetivos. Formigas alertam também para nossa humana diferença: onde reside a maior dificuldade humana de construir e manter organizações solidárias, projetos e saberes solidários, também a reside a complexidade e riqueza de nossa experiência – não precisamos nos tornar cegas para dar vida ao empreendimento coletivo; com ele ganhamos novas e ampliadas visões.
Finalmente, acredita-se que a Enfermagem está hoje em uma posição estratégica, na abertura para novas e interessantes possibilidades... Mas isto está em aberto:
Estas são bifurcações, importantes possibilidades históricas para a profissão e para a saúde mundial. Mas em todas elas se coloca o desafio da solidariedade.